A propósito da homenagem a António Duarte
Breve recado a António Duarte
Há homens que são da raça dos minotauros. E tu, António, foste um deles, sempre igual a ti próprio: generoso e intempestivo, lúcido e inteligente, arrojado e transgressivo, controverso e arrebatado, semeador de ideias e lavrador de amizades.
Acontece que acordei hoje com vontade de te recordar. Recordar os tempos do Liceu da Horta, a tua ânsia cultural e as tuas algibeiras carregadas de poesia…. Rememorar o Café Volga das horas esquecidas, a bica do alento, o brandy da incerteza, o cigarro consolador, a roda de amigos ouvindo a tua palavra sábia. Lembrar o teu cabelo em desalinho, os teus olhos piscos e o teu jeito filosófico de coçar a barba…
Só não quero recordar aquele dia fatídico em que saíste do Café, ajeitaste a tua samarra e arrancaste, no teu “Skoda”, rua Cônsul Dabney acima, numa viagem sem regresso…
Todos sabemos que ficou um bocado de ti em nós, tu que fizeste da palavra uma arma de arremesso, tu que não transigiste com o que era fácil e que não cedeste nem te vergaste a coisa nenhuma, tu que zombaste dos burgueses e desafiaste os poderes e denunciaste a podridão do reino… Ficou o teu exemplo, a tua lição, a tua coragem. Ficou a semente teatral que deixaste, e a verdade é que, nos últimos 30 anos, com o “Sortes à Ventura”, nunca deixámos de fazer teatro na nossa Escola.
Por isso estamos hoje a recordar-te, nós que por cá continuamos pessimamente bem. Rodeados de silêncio e solidão por todos os lados. Vivendo a pacata e pardacenta vidinha. Atolados no império do despacho e do decreto-lei. Tramados com os impostos das nossas angústias. Ensimesmados no sofá da nossa insustentável resignação televisiva. Mas resistindo. Resistindo à intolerância, ao entorpecimento, à indiferença. Acreditando, como tu, na verdade da poesia, nas possibilidades do sonho e nos amanhãs de esperança.
Adeus, António. Para sempre guardarei o teu retrato no fundo do meu espelho.
Victor Rui Dores
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